A História do Carandiru

A história a seguir contém descrições de violência racial e institucional, além de questões históricas de segregação do povo negro que podem trazer desconforto e gatilhos.

A história serve para ensinar, não para ser esquecida. 


 

Para entendermos a história do Carandiru é preciso saber o porquê ele fora criado. Se você leu o texto anterior já sabe qual é a origem das prisões e quais foram as mudanças no pensamento social acerca da punição e da importância que era dada a uma pena privativa de liberdade e não mais as penas de suplício.  

 

Mas a prisão como forma de punição deveria respeitar preceitos da nova interpretação sobre as sanções, que eram baseadas na humanização da pena e da disciplina com o trabalho – e já sabemos também, que com o tempo a prisão já não conseguia garantir o respeito a direitos fundamentais das pessoas que eram encarceradas e nem era garantia do cuidado a integridade física, moral e psicológica dos presos durante o cumprimento da pena. 

 

Ainda assim, o modelo de prisão com o trabalho forçado ou "obrigatório" era o modelo mais aceito na época - e que se estendeu por um longo tempo-, pois trazia a ideia de "utilidade dos transgressores" que haviam subvertido ao pacto social. Uma ideia de reparação de danos além da pena de privação da liberdade. 

 

No dia 13 de maio de 1911, foi iniciada a construção de uma nova Casa de Detenção para a cidade de São Paulo, a "Penitenciária de São Paulo". Albuquerque Lins, lançou a pedra fundamental do que era chamado “presídio-modelo”.  

 

A intenção desse novo presídio era atender às novas exigências do Código Penal republicano de 1890, que era respaldado no "Direito Positivo" da época, que determinava a separação dos réus primários de presos reincidentes e, também, a separação dos condenados de acordo com a natureza do delito e a sua periculosidade. 

 

A arquitetura da nova penitenciária foi inspirada no Centre Pénitentiaire de Fresnes, na França, no modelo "espinha de peixe" (que ainda existe e está em funcionamento até hoje nos arredores de Paris), e foi elaborada pelo engenheiro Giordano Petry. 

 

Apesar de o projeto original ser de Giordano, a construção da penitenciária foi executada pelo Escritório Técnico Ramos de Azevedo, e por isso o projeto sofreu algumas alterações feitas pelo próprio Ramos de Azevedo, razão pela qual ele costuma ser citado como sendo o único engenheiro da obra. 

 

"Penitenciária de São Paulo" foi inaugurada no dia 21 de abril de 1920, no bairro do Carandiru, na zona norte da cidade de São Paulo, e pós a sua inauguração conseguiu cumprir o seu objetivo inicial, se tornando de fato uma penitenciária modelo. 

 

Por pelo menos duas décadas a Penitenciária de São Paulo seguiu sendo um grande exemplo de um sistema prisional "eficiente, exemplar e que realmente era capaz de recuperar e devolver para a sociedade a maioria dos "reeducandos".  

 

Ela também foi considerada um "padrão de excelência das Américas". A penitenciária do Carandiru chegou a ser aberta à visitação pública e se tornou um dos cartões postais da cidade de São Paulo. 

 

A eficácia na execução da pena trouxe grandes autoridades e intelectuais do mundo todo para o Brasil, pois todos queriam conhecer e entender os processos pelos quais os apenados passavam em seu cumprimento de pena. 

  

Em 1936, Stefan Zweig escreveu em seu livro "Encontros com Homens, Livros e Países": que a limpeza e a higiene exemplares faziam com que o presídio se transformasse em uma fábrica de trabalho. Eram os presos que faziam o pão, preparavam os medicamentos, prestavam os serviços na clínica e no hospital, plantavam legumes, lavavam a roupa, faziam pinturas e desenhos e tinham aulas."  

 

Algumas fotos do Complexo:




















Mas, a partir de 1940 as coisas mudaram. A Penitenciária de São Paulo havia excedido a sua lotação máxima e isso começou a causar problemas de segurança interna na unidade, além de problemas comportamentais dos reeducandos decorrentes da mudança estrutural que a penitenciária sofreu devido ao alto número de pessoas presas. 

 

Se haviam mais pessoas presas do que vagas, direitos estavam começando a ser violados e logo o complexo do Carandiru passou a ser reconhecido não mais por seus padrões de excelência, mas por sua superlotação; má administração e pelos massacres violentos que ali ocorriam, em razão da violência institucional que resultava na violência interna entre os detentos. 

 

A superlotação do Carandiru foi uma consequência direta da chamada "Guerra às Drogas", que iniciou no Brasil também no ano de 1940, quando algumas drogas foram criminalizadas no país e tipificadas no Código Penal de 1940, através da Lei nº 2.848/1940, estabelecendo o artigo 281 do CP. 

 

"Art. 281. Importar ou exportar, vender ou expor a venda, fornecer, ainda a título gratuito, transportar, trazer consigo, ter em depósito, guardar, ministrar ou, de qualquer maneira, entregar a consumo substância entorpecente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar." 

 

 

Com o advento desse artigo que criminalizava as drogas, iniciou-se uma força tarefa de combate e perseguição aos usuários e traficantes, autorizando os poderes de polícia e órgãos reguladores a tomar medidas de contenção e sancionar esse novo tipo penal. 

 

Antes mesmo de as drogas serem de fato criminalizadas, já havia um grande preconceito da sociedade em relação aos usuários de drogas. Esse preconceito se dava em grande parte por questões raciais em relação a maconha, que foi apelidada na época como "fumo-de-angola", pois era utilizada em rituais de algumas religiões afro-brasileiras. Assim, é possível perceber que a proibição e criminalização das drogas foi impulsionada principalmente pelo racismo. 

 

É importante lembrar que o povo preto sempre foi criminalizado antes mesmo de cometer qualquer crime. A discriminação dessa população está enraizada nas estruturas da nossa sociedade, que nunca criou políticas públicas para inserir essas pessoas em nosso contexto social após a abolição da escravidão. 

 

A escravidão foi abolida e os escravos foram deixados à própria sorte, sem oportunidades, sem lugar para morar, sem conseguir se alimentar, sem possibilidade de emprego, sem poder estudar, sem nenhum tipo de respaldo do Poder, que escolheu apenas ignorar a existência dessas pessoas. 

 

O fato de elas terem sido exiladas fez com que se reunissem e criassem as favelas, que hoje conhecemos por "comunidades", lá não havia saneamento básico (problemas que existentes até os dias de hoje), não havia segurança, emprego, os filhos dessas pessoas eram impedidos de estudar em escolas de "pessoas brancas" e portanto, não podiam estudar em lugar nenhum, pois não existia uma escola direcionada para pessoas pretas e assim, para que eles pudessem sobreviver, começaram a cometer pequenos delitos que pudessem suprir necessidades intrínsecas a nossa existência. 

 

O povo preto foi escravizado, exilado, descriminado, e criminalização das drogas nos anos 90 era só mais uma forma de exilar essas pessoas mais uma vez, trancando-as em presídios, ao invés de tratar o uso de drogas enquanto uma questão de saúde pública.  

 

Até hoje existe esse estigma em relação as pessoas presas. A sociedade não quer lidar com problemas de criminalidade e questões estruturais de desigualdade social, preferem simplesmente trancar pessoas em um lugar extremamente insalubre e violador de direitos, e ainda espera que essas mesmas pessoas sejam magicamente ressocializadas. 

 

O que não faz nenhum sentido e, por isso preciso citar uma frase do Igor, do Jornal Antijurídico, que diz mais ou menos assim: para resolver a criminalidade não deve haver uma guerra contra às drogas, deve haver uma guerra contra a pobreza e o desemprego. 

 

É muito assustador pensar que em 2021 a principal causa do encarceramento em massa ainda é a mesma que a de 1940.  

 

A superlotação das unidades prisionais causa uma sucessão de violações de direitos humanos, como por exemplo, celas superlotadas e por tanto má condição de higiene pessoal, dificuldade em conseguir espaço para dormir, insalubridade, doenças, doenças sexualmente transmissíveis (em decorrência também de violência sexual), motins, rebeliões, mortes e a degradação da pessoa humana num contexto geral. 

 

O Carandiru passou por todas essas questões ao longo de sua história, ainda que a cada novo Governo fosse determinada a ampliação do Complexo, essas reformas não conseguiram suprir o alto índice de encarceramento.  

 

Na década de 1950, o governador Jânio Quadros, determinou a criação da Casa de Detenção Profº. Flamínio Favero, que popularmente ficou conhecida como a Casa de Detenção do Complexo do Carandiru. Ela foi entregue com três pavilhões construídos: o 2, 5, 8, todos com capacidade total para 3.500 presos provisórios. 

 

A Casa de Detenção de São Paulo, foi oficialmente inaugurada no dia 11 de Setembro de 1956 e foi considerada por vários órgãos de Segurança do Brasil e de outros países como sendo o 2º maior presídio do mundo e o mais seguro. 

 

Porém, com o passar do tempo, os presos não eram mais divididos por tipo de crime cometido e sua periculosidade, o encarceramento era tanto que a organização dos presos e da própria penitenciária havia ficado no passado. 

 

Como não havia mais vagas em outros locais para cumprimento de penas, a Casa de Detenção de São Paulo, se transformou em um verdadeiro depósito de pessoas presas. 

 

Com a chegada da década de 1960 foram entregues mais quatro pavilhões: o 4, o 7 e o 9, sendo este o último destinado a presos primários entre 18 e 25 anos e de alta periculosidade. 

 

A construção de novos pavilhões nunca conseguiu atingir a quantidade de vagas que eram necessárias para as altas taxas de aprisionamento no Estado, dessa forma, o Carandiru seguiu desde 1940 sendo uma unidade prisional superlotada e a sua história se resumia a crises e rebeliões. 

 

Mas a pior de todas, sem dúvidas, foi a que resultou no massacre do Carandiru em 1992, quando então, as autoridades penitenciárias amontoavam, em péssimas condições, cerca de oito mil detentos. 

 

E a história do massacre do Carandiru você confere no post da semana que vem! 


Fotos utilizadas por esse artigo: Museu Penitenciário Paulista

Fontes de pesquisa: 

https://www.saopauloinfoco.com.br/historia-carandiru/

http://www.sap.sp.gov.br/

https://saopauloantiga.com.br/penitenciaria-de-sao-paulo/

http://museupenitenciario.blogspot.com/p/sap.html

http://memoriasdaditadura.org.br/dignificacao-do-sistema-prisional/

http://memoriasdaditadura.org.br/dignificacao-do-sistema-prisional/#encarceramento-em-massa-e-politica-de-drogas

http://memoriasdaditadura.org.br/dignificacao-do-sistema-prisional/#quem-esta-preso-no-brasil-seletividade-penal-e-sistema-penitenciario

http://m.acervo.estadao.com.br/noticias/acervo,era-uma-vez-em-sp-penitenciaria-do-carandiru,11257,0.htm

http://m.acervo.estadao.com.br/noticias/acervo,carandiru-a-profecia-que--se-concretizou-,7175,0.htm

http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=12616f69e1fed7ea#:~:text=Para%20Zaffaroni%20(2012)%2C%20%C3%A9,quando%20e%20contra%20quem%20decidem.

https://monografias.brasilescola.uol.com.br/direito/a-historia-pena-prisao.htm


Dica de vídeo:

RACISMO E ENCARCERAMENTO EM MASSA | Silvio Almeida

https://www.youtube.com/watch?v=-TU5iLbUcBw&ab_channel=TVBoitempo


Dica de Canal no YouTube:

Jornal Antijurídico

https://www.youtube.com/channel/UC0zWycogkQFXMnk-CVZAxyQ


Dica de documentário

A 13ª Emenda - Netflix 

https://www.netflix.com/br/title/80091741

Estudiosos, ativistas e políticos analisam a correlação entre a criminalização da população negra dos EUA e o boom do sistema prisional do país.


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Por Thainá Bavaresco.

Comentários

  1. Não sabia que a criminalização da maconha tinha surgido através do preconceito... The Crime sempre trazendo muito mais do que o esperado! 👏🏻👏🏻

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    1. pois é amigaaa!!! Obrigada meu amor, por todo o apoio e por estar sempre por aqui!

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