O Feminicídio de Julieta Hernández - E a Insegurança de Mulheres Viajantes

A história a seguir contém descrições de crimes extremamente violentos: estupro, feminicídio e carbonização. Não é indicado para pessoas sensíveis e é recomendado para maiores de 18 anos.

"Ontem me mataram. Neguei-me a deixar que me tocassem e com um pau arrebentaram meu crânio. Me deram uma facada e me deixaram morrer sangrando. Como lixo, me colocaram em um saco de plástico preto, enrolada com fita adesiva, e fui jogada em uma praia, onde horas mais tarde me encontraram. 

 

Mas, por ser mulher, é minimizado. Torna-se menos grave porque, claro, eu procurei. Fazendo o que queria, encontrei o que merecia por não ser submissa, por não ficar em casa, por investir meu próprio dinheiro em meus sonhos. Por isso e muito mais, me condenaram.  

 

Eu sofri, porque já não estou aqui. Mas você está. E é mulher. E tem de aguentar que continuem esfregando em você o mesmo discurso de 'fazer-se respeitar', de que é culpa sua que gritem que querem pegar/lamber/chupar algum de seus genitais na rua por usar shorts com 40°C de calor, de que se viaja sozinha é uma louca' e, muito seguramente, se aconteceu alguma coisa, se pisotearam seus direitos, você é que procurou. 

  

Peço a você que, por mim e por todas as mulheres que foram caladas, silenciadas, que tiveram sua vida e seus sonhos ferrados, levante a voz. Vamos brigar, eu ao seu lado, em espírito, e prometo que um dia seremos tantas que não haverá uma quantidade de sacos plásticos suficiente para nos calar." 

 

Escritora paraguaia Guadalupe Acosta sobre a morte de duas jovens argentinas no Equador em 2016.

 


Julieta Inés Hernández Martínez, era uma artista circense Venezuelana de 38 anos, que residia no Brasil desde 2015. 

 

Julieta era considerada nômade e desde 2019 integrava o grupo “Pé Vermêi”, composto por mulheres e homens cicloviajantes e artistas circenses que realizavam apresentações de rua, além de levar arte, música e teatro para comunidades carentes. No Instagram oficial do grupo, sua atuação é descrita como: "Circo, arte de rua, cicloviagem e ativismo" https://www.instagram.com/pevermei/  

 

A personagem principal de Julieta era a miss jujuba, seu espetáculo circense era voltado principalmente para o público infantil, mas ela também realizava apresentações musicais por onde passava.  Julieta se autointitulava como uma bonequeira palhaça e viajante e tinha mais de 10.000 seguidores em seu Instagram, que acompanhavam sua rotina atípica e inspiradora. 

 




Em dezembro de 2023, Julieta decidiu passar as festas de final de ano com sua mãe na Venezuela, a viagem seria mais uma de suas várias aventuras com sua melhor companheira, sua bicicleta.  

 

O ponto de partida seria a cidade do Rio de Janeiro, e, apesar de Julieta realizar essa viagem sozinha, a comunicação com o grupo de cicloviajantes era constante. Todos se comunicavam de forma efetiva, informando as cidades em que passariam, e quais os locais em que pernoitariam. 

 

Julieta seguiu sua rota, passando de cidade em cidade rumo a Venezuela com sua bicicleta, e pernoitava na casa de artistas, pousadas e locais voltados a grupos culturais. 

 

Ao chegar em Presidente Figueiredo no Amazonas todas as pousadas conhecidas da cidade estavam lotadas, então, a Julieta encontrou uma hospedaria/refúgio mais simples e afastada, mas muito utilizada como apoio para andarilhos e nômades que passavam por aquela região, e o valor cobrado era de apenas R$10,00 a pernoite, já que as acomodações eram precárias e os hospedes dormiam em redes na varanda do local. 

 


Tudo parecia normal, afinal, Julieta encontrara um local teoricamente seguro, em que os anfitriões da hospedaria era um casal com cinco filhos, no entanto, após o dia 23 de dezembro de 2023, Julieta não foi mais vista, não apareceu em suas redes sociais, e não se comunicou com o grupo dos cicloviajantes sobre seu paradeiro. Isso os deixou alertas, uma vez que a comunicação no grupo sobre as atualizações de localização de todos era feita com frequência. 

 

Dessa forma, rapidamente seus amigos e seguidores decidiram divulgar fotos de Julieta como desaparecida e diversas buscas estavam sendo feitas por grupos de pessoas que se solidarizaram com a causa. Porém, sem sucesso.  

 

Assim, foi registrado através da Delegacia Virtual, um Boletim de Ocorrência (BO) informando o desaparecimento de Julieta na região de Presidente Figueiredo/AM, e na manhã do dia 04 de janeiro de 2024 as investigações sobre o seu paradeiro se iniciaram. 

 

O BO informava que o último contato de Julieta com a família teria sido no dia 23 de dezembro de 2023, por volta de meia-noite e meia, quando ela teria dito que iria pernoitar em Presidente Figueiredo, e no outro dia seguiria para Rorainópolis, em Roraima. 

 

Após essa informação, os policiais do 37ª Distrito Integrado de Polícia (DIP), foram até as pousadas da região, a fim de obter notícias sobre o paradeiro de Julieta. Já na manhã do dia 05 de janeiro de 2024, a equipe foi até o refúgio em que Julieta havia se hospedado e localizaram o senhor Thiago Agles da Silva, de 32 anos, que disse que a Julieta havia pernoitado no local e seguido viagem no sentido da rodovia. 

 

De acordo com o delegado do município, o senhor Valdinei Silva, no mesmo dia, um morador localizou partes da bicicleta de Julieta, acompanhadas de sua barraca perto do refúgio/hospedaria e acionou a polícia. Quando a equipe chegou ao local, Thiago tentou fugir, mas foi capturado. Ele e a esposa, a senhora Deliomara dos Anjos Santos, de 29 anos, foram conduzidos à delegacia, e, apesar de apresentarem contradição nos depoimentos, confirmaram a autoria do crime logo depois. 

 



Por se tratar de uma área de mata, foi solicitado o apoio do Corpo de Bombeiros Militar do Amazonas (CBMAM), acompanhados de seus cães farejadores, os quais deram assistência às buscas e um corpo já em estado de decomposição foi encontrado em uma cova rasa, no quintal do refúgio, além de outros pertences e com lixo espalhado em sua superfície. 

 

Na noite do dia 06 de janeiro de 2024, o Departamento de Polícia Técnico-Cientifica (DPTC) informou que o corpo encontrado realmente era de Julieta, a identificação foi realizada por meio do procedimento de necropapiloscopia, realizado por peritos do Instituto Médico Legal (IML) e do Instituto de Identificação do Amazonas. 

 

As versões apresentadas por Tiago e Deliomara sobre as circunstâncias do crime foram as seguintes:  

 

De acordo com a Deliomara, Tiago queria roubar o celular de Julieta, então, por volta da 1 hora da manhã do dia 24 de dezembro de 2023, ele teria pedido para que sua esposa tentasse furtar o celular de Julieta enquanto ela dormia. Momento em que Deliomara teria se recusado a fazer isso.  

 

Então, Tiago se dirigiu até Julieta com uma faca exigindo o seu celular, Julieta que estava dormindo, acordou rapidamente e nesse momento os dois entraram em uma luta corporal. Tiago teria a enforcado, e Julieta perdeu sua consciência. Ele ordenou que Deliomara amarrasse os pés e as mãos de Julieta e a levasse para dentro da casa. 

 

Nesse momento, Tiago estuprou e violentou Julieta que ainda estava inconsciente. Deliomara, por sua vez teria ficado com ciúmes de ver o marido abusando sexualmente de Julieta, e em uma crise de fúria jogou álcool e ateou fogo em Tiago e Julieta. 

 

Tiago conseguiu correr para pagar o fogo de seu corpo e não se sabe se de fato ele apagou o fogo do corpo de Julieta, mas nesse momento, Tiago teria a enforcado mais uma vez. Em seguida, Tiago e Deliomara arrastaram o corpo de Julieta até a mata e a enterram. Especula-se que Julieta pode ter sido enterrada ainda com vida. 

 

Já na versão de Tiago, ele e Julieta estavam na verdade usando droga juntos quando sua esposa ficou com ciúmes e atacou os dois, ateando fogo em seus corpos.  

 

Porém, a polícia nega essa versão, e acredita que a cronologia mais plausível seria a que o Tiago teria atacado Julieta conforme a descrição da versão de Deliomara. 

 

A autópsia não conseguiu concluir se Julieta ainda estava com vida no momento em que foi enterrada, ou se realmente houve queimaduras em seu corpo devido ao estado avançado de decomposição. 

 

Após a descoberta desse crime terrível, diversos coletivos se uniram para fazer vaquinhas online e ajudar a encaminhar o corpo de Julieta para sua família, contudo, as embaixadas dos governos brasileiro e venezuelano se comprometerem a arcar com os custos do translado funerário de Julieta. Sendo os valores arrecadados nas vaquinhas encaminhados a família de Julieta. 

 


O caso é muito recente, então não houve julgamento pelos crimes cometidos, mas Tiago e Deliomara provavelmente responderão por estupro, latrocínio e ocultação de cadáver. 


O crime repercutiu muito e chocou milhares de pessoas, e diversas manifestações foram realizadas em memória de Julieta, as pautas principais eram sobre justiça por sua morte, e respeito pela vida das mulheres, também foram levantados pontos importantes sobre a insegurança de mulheres viajantes. 

 





Para a sociedade é como se a vida de mulheres fosse literalmente descartada, como se o nosso direito de existir estivesse condicionado as atitudes que tomamos ou não ao longo de nossas vidas, podemos encontrar exemplos práticos e cotidianos quando, a notícia de um estupro é seguida pelas lastimáveis perguntas: "mas o que ela fez para ser estuprada?"; "qual a roupa que ela utilizava?", dentre tantos outros questionamentos grotescos que reduzem um crime terrível a algo "comum" que permeia a vida numa sociedade que normalizou a cultura do estupro e do feminicídio.  

 

Como se a culpa desse crime ter acontecido fosse da vítima, quando na verdade, sabemos que não é. Caso fosse, não existiria estupro de bebês e crianças, não existiria estupro de mulheres no oriente médio, em que as vestimentas são as tradicionais burcas, que cobrem todo o corpo e cabelo das vítimas.  

 

A culpa é única e exclusivamente dos autores desses crimes. De uma sociedade patriarcal e machista que objetifica mulheres, e doutrina os homens desde pequenos para acreditarem que a existência de mulheres ocorre em detrimento de seu próprio prazer, para te servir, e que por isso, é inferior. A nossa vida vale menos na cabeça de grande parte dessa sociedade doente. 

 

Esse cenário se agrava quando mulheres decidem viajar "sozinhas", essa é a frase, "mulher foi morta enquanto viajava sozinha", e não "homem assassinou mulher viajante/mochileira". Se não estamos acompanhadas por um homem, estamos sozinhas, e por isso, a culpa de qualquer coisa que nos aconteça é nossa.  

 

Em outubro de 2021, publiquei aqui no The Crime o caso da Gabrielle Petito (https://www.thecrimebrasil.com.br/2021/10/caso-gabrielle-petito.html), ela viajava com o seu NOIVO e foi agredida e assassinada por ele. Mesmo assim as pessoas tentavam encontrar JUSTIFICATIVAS para o crime. Seja por ciúmes, por desentendimentos ou qualquer outra coisa. E a verdade é que simplesmente não estamos seguras em lugar nenhum. E não importa o que aconteça, sempre tentarão culpabilizar a vítima quando se trata de um crime cometido contra uma minoria.  

 

É desesperador viver nesse mundo. E piora quando nos deparamos com os dados fornecidos pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH), onde demonstrou que o Brasil ocupa o 5º lugar no ranking mundial de Feminicídio. O país só perde para El Salvador, Colômbia, Guatemala e Rússia em número de casos de assassinato de mulheres.  

 

Em comparação com países desenvolvidos, no Brasil se mata 48 vezes mais mulheres que o Reino Unido; 24 vezes mais que a Dinamarca; e 16 vezes mais que no Japão ou Escócia.  

 

Além disso, de acordo com o IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), o Brasil tem cerca de 822 mil casos de estupro a cada ano, o que significa que duas mulheres são estupradas por minuto. A pesquisa do IPEA aponta que apenas 8,5% dos crimes são registrados pela polícia e 4,2% pelo sistema de saúde. 

 

O resultado disso é histórias como a de Julieta, e como a de tantas outras mulheres que já abordei aqui no The Crime, mulheres que não poderão realizar seus sonhos e viver suas vidas como bem desejarem. Não podem porque foras assassinadas, suas vidas e sonhos foram arrancadas sem motivo nenhum.  

 

Por fim, partindo de uma análise pessoal, na bio do meu Instagram eu deixo a seguinte mensagem: "A nossa existência é política!", essa frase pode parecer pequena para alguns, mas para nós mulheres e todas as outras minorias é um grito de resistência. Porque existir é um ato político quando SOBREVIVERMOS em um mundo que não foi feito para nós, então acordar todos os dias e VIVER, é, por si só, um ato de coragem!  

 

Não podemos nos calar e não deixaremos de viver tudo o que quisermos por sentirmos medo. A insegurança norteia nossas vidas, mas é preciso continuar. Não só por nós mesmas, mas por todas que vieram antes de nós, e para que as que ainda virão, possam, de alguma forma, viver mais livremente. 

 

É preciso também, que os homens reavaliem suas posturas e seus privilégios. Que lutem essa causa conosco. Não adianta lutarmos por um mundo com mais equidade se os que oprimem não reverem comportamentos violentos enraizados. Não há como evoluirmos enquanto sociedade, se não questionarmos padrões culturais patriarcais.  


Fontes de pesquisa:

https://www.youtube.com/watch?v=KY8lp29UO0w&ab_channel=UOL

https://g1.globo.com/am/amazonas/noticia/2024/01/08/julieta-hernandez-quem-e-a-artista-venezuelana-morta-no-am-enquanto-viajava-de-bicicleta-pelo-brasil.ghtml

https://www.ssp.am.gov.br/iml-libera-corpo-da-venezuelana-julieta-ines-hernandez-martinez/ 

https://www.teatrinetv.com.br/vida-de-artista/quem-e-casal-que-matou-e-detalhes-do-crime-contra-a-palhaca/18410/

https://g1.globo.com/am/amazonas/noticia/2024/01/07/artista-venezuelana-foi-morta-14-dias-atras-assim-que-perdeu-contato-com-amigos-diz-policia.ghtml

https://g1.globo.com/am/amazonas/noticia/2024/01/06/corpo-encontrado-no-am-e-de-artista-venezuelana-que-viajava-de-bicicleta-pelo-brasil-diz-policia.ghtml

https://www.youtube.com/watch?v=FkghAuiEFFE&ab_channel=HorrordasMinas

https://www1.folha.uol.com.br/colunas/djamila-ribeiro/2024/01/morte-de-julieta-hernandez-e-lembranca-dolorosa-da-falta-de-liberdade-da-mulher.shtml

O Brasil é o quinto país do mundo que mais mata mulheres!

https://vestibular.uol.com.br/resumo-das-disciplinas/atualidades/feminicidio-brasil-e-o-5-pais-em-morte-violentas-de-mulheres-no-mundo.htm#:~:text=O%20Brasil%20ocupa%20o%205%C2%BA,casos%20de%20assassinato%20de%20mulheres.

https://www.unifesp.br/edicao-atual-entrementes/item/2266-brasil-e-o-5-pais-que-mais-mata-mulheres

Mais de 800 mil estupros são cometidos por ano no Brasil

https://www.ipea.gov.br/portal/categorias/45-todas-as-noticias/noticias/13541-brasil-tem-cerca-de-822-mil-casos-de-estupro-a-cada-ano-dois-por-minuto

Indicação de Vídeo sobre o caso

https://www.youtube.com/watch?v=fv2j9UJNEdw&ab_channel=InstitutoConhecimentoLiberta

Instagram de Julieta

https://www.instagram.com/utopiamaceradaenchocolate/


Ouça o PODCAST aqui


https://anchor.fm/thecrimebrasil


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https://www.youtube.com/channel/UCW7RjpRGVisTvC7I9xIOKcw



Por Thainá Bavaresco.

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